terça-feira, 28 de outubro de 2014

Encobrimento, preguiça e ingratidão


Numa passagem particularmente inflamada do seu discurso, no encerramento das Jornadas Parlamentares do PSD/PP, Passos Coelho acusou jornalistas e comentadores de serem «preguiçosos», «orgulhosos» e «patéticos». Defendendo que nunca houve um governo nem um orçamento com tanta «transparência», o primeiro-ministro afirmou que «todos os comentadores e jornalistas [podiam] olhar para os números e saber o que eles dizem», para considerar, logo a seguir, que «chega a ser patético verificar a dificuldade de gente que se diz independente tem de assumir que errou, que foi preguiçosa, que não leu, que não estudou, não comparou, que não se interessou, a não ser em causar uma boa impressão de dizer "Maria vai com as outras", o que toda gente diz porque fica bem». E sublinhou ainda, pela enésima vez, que o Governo conseguira recuperar a «credibilidade do país» e a «confiança dos agentes económicos».

1. Em matéria de clareza, talvez fosse bom que o governo tivesse, por exemplo, a fineza de divulgar a lista dos contribuintes que recebem benefícios fiscais em sede de IRC. Legalmente, o executivo está obrigado a fazê-lo até ao dia 30 de Setembro de cada ano, mas a publicação dos dados relativos a 2013 (sublinhe-se, 2013) ainda não aconteceu. Na passada quinta-feira, aliás, o Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF) assinalou publicamente esse facto, alertando para a «falta de transparência» que constitui a ocultação da dita lista.(*) O mais provável será, contudo, que prevaleça uma vez mais o modelo de accountability da Tecnoforma adoptado pelo primeiro-ministro e que foi curiosamente replicado pelo Ministério do Emprego e pelo Instituto Camões em relação ao CPPC, a famosa «ONG» de Passos Coelho (sem que o «desaparecimento» de papéis pareça ter suscitado, até ao momento, qualquer processo de inquérito ou averiguações).

2. Quanto à «preguiça» de jornalistas e comentadores, o primeiro ministro tem razão: basta pensar na importância que muitos deles tiveram (por não lerem, por não estudarem, por não compararem, por não se interessarem, por não interpelarem), para que um punhado de ideias falsas do senso comum, tão frágeis quanto convincentes, fossem amplificadas na comunicação social, ajudando a tecer as malhas da narrativa trágica que sustentou o mantra da austeridade e dos sacrifícios e que alçou a dupla Coelho e Portas ao poder. Do «viver acima das possibilidades» às «gorduras e ineficiências do Estado», passando pela conversa abjecta sobre os «malandros do RSI», os «direitos adquiridos», a «magia do empreendedorismo», o «desemprego como oportunidade» ou a «supressão de feriados como força motriz da competitividade». Historietas rasca e romances fraudulentos que muitos comentadores e jornalistas difundiram aos quatro ventos, sobretudo nas televisões, e a quem Passos Coelho deveria estar eternamente grato. E isto para já não falar dos serviçais sem escrúpulos, que povoaram em uníssono (e ainda povoam) os principais espaços televisivos de debate político-económico.

(*) Desta lista fazem parte, como recorda o OBEGEF, «as empresas com benefícios contratuais ao investimento, as empresas instaladas na Zona Franca da Madeira, as empresas com benefícios à criação de emprego, as empresas com taxas reduzidas de IRC para a interioridade, as empresas com incentivos à investigação e desenvolvimento, as cooperativas com taxa reduzida de IRC, as instituições de ensino particular com taxa reduzida de IRC e as empresas com benefícios de ISV».

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bom.

De